Deixem as câmeras em casa


Há anos eu saia de casa vendo um céu pálido, nublado, pedido por atenção. As pessoas usavam roupas sociais e sapatos que brilhavam mais que os olhos delas. Eram tortas. As bolsas e mochilas pesavam tanto que distorcia a coluna. Olhavam para baixo pra não tropeçar, apesar do piso ser extremamente reto e sem falhas.

Eu fotografava tudo. 

Queria contar aquela história!

Mais um dia amanhã, com as pessoas acordando já reativadas para mais passos. Eu sonhei a noite inteira com um casal que vagava na madrugada pelas ruas frias e francesas de Paris até o dia amanhecer. Mas como diz os belos poemas românticos "o amanhecer é para padeiros e amantes". Quanto a mim, acordei atrasada pra o trabalho, na correria, esqueci a câmera.

Alguns passos de casa, escuto uma canção cantarolada ainda ao longe. Com aproximação, tem uma senhora que acumulava algumas décadas de idade, de sapato rosa, meias verdes, short azul e blusa branca com um casaco grande lilás. Ela tocava violino enquanto dançava passos descordenados. Mantinha os olhos fechados e sorria. 

Sua música foi cessando, ficando mais frágil, como ela, que foi sentando na grama que não era mais verde dos passos fortes das pessoas tortas. Abraçada com o violino, ainda sorrindo, ela deitou e morreu.

Com os olhos inundados eu pensei "logo hoje, que eu esqueci a câmera". Aquela senhora poderia durar para sempre com um registro. 

Minha memória se desconectou de mim e voltou pra quase 2 décadas atrás, enquanto criança, indo para o colégio, lembrei de ter visto cores refletindo no sol forte da tarde, mas não olhei porque estava atrasada pra uma aula de literatura.

Era aquela mesma senhora, que estava lá a anos, sem nunca ser vista pelos atrasados.

A literatura... É ela! 

E a minha câmera, foi substituída por outra que só registra na memória, e consegue brilhar sem flash.



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